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Lançado um ano após o fim da ocupação americana do Japão, a estreia de Tanaka na realização explora os conflitos profissionais e pessoais de Reikichi, um veterano repatriado que procura o seu amor perdido enquanto traduz cartas românticas de prostitutas japonesas para soldados americanos.
Kinuyo Tanaka, para sempre uma realizadora Luís Miguel Oliveira, Publico 6 de Abril de 2023 Mais conhecida como actriz, a japonesa foi uma presença rara num mundo então absolutamente masculino: o dos realizadores de cinema. Chegam a Portugal todos os seus filmes como realizadora.
Vamos abrir, mais uma vez, a arca do cinema clássico japonês. Pela mão da The Stone & the Plot, que já fez chegar às salas dois programas de “Mestres Japoneses Desconhecidos”, da arca sai agora a íntegra da obra de Kinuyo Tanaka como realizadora.
De novo em colaboração com o programador Miguel Patrício, grande conhecedor do cinema japonês, a distribuidora estreará, em dois tomos, os seis filmes dirigidos por Tanaka, uma das poucas mulheres (mas não a primeira) a trabalhar como realizadora dentro da indústria japonesa. Para já, vamos ver os primeiros três filmes de Tanaka, dirigidos entre 1953 e 1955 – Carta de Amor, A Lua Ascendeu e Para Sempre Mulher. Mais tarde chegarão os três últimos, realizados também em rápida sucessão (de 1960 a 1962) depois de um intervalo de cinco anos entre o derradeiro filme do primeiro grupo e o primeiro do segundo – Princesa Errante, Mulheres da Noite e Senhora Ogin.
Foi uma obra que se manteve relativamente “secreta” durante demasiado tempo, mas não mais secreta (evitemos os reflexos de Pavlov da “modernidade”) do que dúzias de outras obras do período clássico japonês, e mesmo do período pós-clássico – e os referidos programas de “Mestres Desconhecidos”, para não sairmos deste contexto delimitado, já deixaram boas indicações do tanto, tanto mesmo, que há ainda por recuperar e descobrir no cinema do Japão.
Muito menos secreto é o seu trabalho como actriz. Aí, evidentemente, o nome de Kinuyo Tanaka é famosíssimo. Forma com Machiko Kyo e Setsuko Hara aquele que porventura é o trio de actrizes clássicas japonesas mais conhecidas dos cinéfilos ocidentais, pelo menos dos iniciados nas obras dos “mestres conhecidos”, Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Mikio Naruse, Akira Kurosawa. Tanaka trabalhou com todos eles (e mais ainda: Gosho, Shimizu, Kinoshita, Ichikawa, Kumai, Masumura, em lista não exaustiva), numa longuíssima carreira que começou ainda adolescente, em meados dos anos 20, e foi até meados da década de 1970, concluindo-se num filme de Yasuzo Masumura (precisamente um dos cineastas revelados nos programas de “Mestres Desconhecidos”), estreado em 1976.
Tanaka morreu no ano seguinte, algo prematuramente (com 67 anos), em consequência de um tumor cerebral, pelo que a sua carreira poder-se-ia facilmente ter estendido mais ainda. Mas morreu plenamente reconhecida como actriz, no Japão, onde nunca lhe faltaram as honras, e na Europa, onde em 1975 recebera, no Festival de Berlim, o Leão de melhor actriz, pelo seu papel num filme de Kei Kumai.
Era já bastante conhecida na Europa no momento em que passou à realização, e um sinal claro disso foi a inclusão do seu filme de estreia, Carta de Amor, na competição oficial do Festival de Cannes de 1954. No ano anterior, precisamente o ano da estreia japonesa de Carta de Amor, tinha acompanhado Mizoguchi numa viagem à Europa, fotograficamente bastante documentada, quando O Intendente Sansho foi exibido no festival de Veneza. A viagem passou, naturalmente, por Paris, a pequena “pátria” dos Cahiers du Cinéma, revista que era então a principal responsável pelo endeusamento de Mizoguchi, oposto, naqueles anos de descoberta europeia a conta-gotas do cinema japonês, ao mais “popular” Kurosawa, que, no entanto, através de As Portas do Inferno, dera início à renovação do interesse da cinefilia europeia pelo cinema feito no Japão.
É importante notar isto que porque foi com Mizoguchi que Tanaka estabeleceu, como actriz, a relação mais forte, protagonizando vários dos seus filmes mais célebres nos anos do pós-guerra, de Utamaro ao Sansho, passando pelos Contos da Lua Vaga entre muitos outros. Correu até o rumor, nunca desfeito embora ambos o tenham negado (Tanaka: “Éramos casados em frente das câmaras, mas não atrás delas”), de que Mizoguchi e Kinuyo teriam algum tipo de relação romântica. Pormenor que, mais uma vez, é importante notar porque o que veio interromper esta relação tão forte e tão profícua foi, precisamente, a passagem de Tanaka à realização. Mizoguchi opunha-se, argumentava que Tanaka “não tinha feitio” para ser realizadora, e uma vez consumada a passagem não quis voltar a trabalhar com ela. Num cineasta tão “feminista” como Mizoguchi, e embora toda a gente possa ter as suas contradições, custa a crer que a razão de tamanha oposição tenha sido uma questão de chauvinismo machista. É mais provável que o motivo fosse, muito prosaicamente, uma questão de egoísmo artístico: Mizoguchi tinha reputação de ser severíssimo com os actores (e há declarações de Tanaka que, por sua parte, o confirmam), exigir-lhes uma disciplina e uma entrega totais, e é perfeitamente possível que tenha pensado que Tanaka não voltaria a ser a mesma actriz, capaz dessa disciplina e dessa entrega, a partir do momento em que a cabeça dela passasse a dividir as preocupações da representação e as da realização.
Mizoguchi, com quem Tanaka tanto aprendera, foi assim uma figura distante na entrada da actriz no mundo, então absolutamente masculino (um pouco por todo o lado, mas sobretudo no Japão), dos realizadores de cinema. É preciso dizer que esse mundo era extremamente ordenado, hierarquizado e, de certa forma, “sindicalizado”, e que o acesso ao posto de realizador tinha de ser previamente aprovado pelos pares. A recusa de Mizoguchi não foi acompanhada pelos outros realizadores (pelo menos, pela maioria), e se a reputação de Tanaka lhe conferia um certo privilégio, aquele também era o momento certo para a indústria japonesa voltar a acolher uma mulher realizadora, apenas a segunda depois da pioneira Tazuko Sakane nos anos 30 (esta, sim, esquecida quase por completo: que surpresas guardará a obra dela?).
Era o tempo do pós-guerra, o tempo de lamber as feridas da “débacle”, da desonra e da destruição do Japão antigo, um tempo em que – não é preciso ir aos livros de história ou de sociologia, basta ver os filmes, por exemplo, os Naruses do imediato pós-guerra – só as mulheres emergiam, subitamente, como figuras intactas. O desastre da guerra, quer o rumo para ela quer as suas consequências, fora um assunto masculino, e a falência do Japão uma falência do “macho japonês”. Com a ajuda da “pedagogia” americana durante a ocupação (que terminou em 1952, o ano anterior à estreia de Tanaka), o Japão aprendia a olhar com outros olhos para as mulheres e para as figuras femininas, algo que está reflectido em muito cinema da época (mesmo se feito por homens, mas não há cinema mais consistentemente “feminino” do que o cinema japonês das primeiras décadas depois da guerra) e que ia tendo consequências práticas na organização social do país. Anos depois, Tanaka diria: “De repente, havia mulheres no parlamento, pela primeira vez na história, mas não havia realizadoras, e pensei: ‘Porque não eu’?”.
Uma mulher olha para os homens a olhar para as mulheres
Seria absurdo, até pelas razões já expostas (a preponderância de personagens femininas no cinema japonês da época), pretender que o foco nas mulheres seja um traço distintivo dos filmes de Tanaka. É, quando muito, a maneira de habitar esse foco, radicalizando-o literalmente numa questão de corpo (e do corpo) que a diferencia, sobretudo nesse filme estarrecedor (e já lá vamos) que é Para Sempre Mulher. Mas dir-se-ia que, nos dois primeiros filmes, a curiosidade de Tanaka, sem perder as mulheres, se volta, tanto quanto, para os homens.
Em Carta de Amor, por exemplo: podia ser descrito, num universo de filmes em que os homens olham para as mulheres, como um filme onde uma mulher olha para os homens a olhar para as mulheres. É um filme, que termina num impasse crudelíssimo e quase amargo, sobre o olhar masculino nas muito específicas circunstâncias em que a narrativa decorre. Os americanos por todo o lado, a cultura americana a implantar-se, as mulheres procuram a Vogue nos quiosques e os arquitectos a American Home. Muitas mulheres, sobretudo as viúvas de guerra, encontram um remédio para a penúria estabelecendo amizades “especiais” (o filme é prodigioso no balanço entre o implícito e o explícito da descrição destas relações) com militares americanos ou funcionários administrativos da ocupação. Mas depois eles voltam para a América e elas só podem mandar- lhes cartas – outro pequeno negócio, central no filme: a redacção de cartas em inglês. O protagonista masculino descobre que o seu amor de infância, por quem espera desde sempre (atenção à cena do flash-back e sobretudo ao seu lançamento: aquele plano de dentro do comboio que parte, através da janela, é um apontamento de “mise en scène” que bastava para sustentar que Tanaka tinha génio), é uma destas mulheres, viúva de guerra que teve um, ou mais do que um, amante americano. E não consegue ultrapassar isso. O que é espantoso é que Tanaka, sendo implicitamente crítica do olhar e das expectativas masculinas, exprima quase compaixão: nem herói “positivo” nem “negativo”, aquele homem é como todo o Japão à volta dele, um mundo em transformação tão radical que leva o bebé com a água do banho, o “bem” e o “mal” do mundo antigo substituídos por novos “bens” e “males”, que ninguém sabe se compensam os outros.
É um pouco assim ainda o que está em causa em A Lua Ascendeu, quanto mais não seja por se tratar do mundo de Ozu visto, ou revisto, pelos olhos de uma realizadora. É quase uma homenagem, no respeito de Tanaka pela bonomia agridoce de Ozu, pelo seu tratamento das questões geracionais (os filhos que já não iguais aos pais, embora continuem a pensar “formatados” por eles, quer dizer, pela “tradição”), pela maneira como replica até certos procedimentos de Ozu – e nem pensamos tanto nos sobrevalorizados “planos-tatami” (que naturalmente não são um exclusivo de Ozu, numa cultura onde tanto, a nível doméstico, se passa numa relação com o chão e rente ao chão) mas nos “pillow shots”, nos “planos-almofada” como Noel Burch lhes chamou, aqueles enquadramentos vazios que fazem respirar a narrativa com um sopro melancólico indefinível, além da presença do actor fétiche de Ozu, Chishu Ryu (brevemente visto, quase um cameo, em Carta de Amor). Mas dentro disto, e duma história de uma família de “casamenteiros” onde todos se preocupam com todos mas não consigo próprios, Tanaka segue um ritmo mais espevitado (espevita mais as personagens, também) e carrega na tecla do lirismo de uma forma muito própria (as cenas ao luar) – é a sua primeira obra-prima, depois do tirocínio da estreia.
Nada nos prepara é para Para Sempre Mulher. Que filme, e que ousadia – sobretudo a partir do momento, a meio do filme, em que a protagonista, uma poetisa divorciada que ainda anseia pelo amor e pelo reconhecimento, é vista a apalpar o peito. Segue-se uma das mais dilaceradas e dilacerantes “via crucis”, um dos mais espantosos melodramas da doença, que alguma vez se fizeram. A ousadia, e esta provavelmente só uma mulher a podia filmar, de confrontar um corpo “diminuído” com a sua totalidade de “sujeito desejante” (as mãos de Yumeji Tsukioka a acariciarem os cabelos e o corpo do seu último amado são uma expressão incrível, poderosíssima de um desejo, ao mesmo tempo carnal e espiritual, e nunca se viu isto assim).
Mas é como diz a personagem: quis o destino que o seu “momento mais glorioso” coincidisse com o seu “momento mais lastimável”. E desta terrível sobreposição de contrários não mais se sai, rumo a um final – a mensagem dela aos filhos, que coisa!, nem sequer a vamos revelar para não estragar o pranto a ninguém – onde convém ao espectador ter um lenço a jeito. Porque vai sair a fungar, e a ansiar pela chegada do segundo volume das obras completas de Kinuyo Tanaka.