CINECLUBE DE JOANE

Janeiro 2023
Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão

Programa mensal

de Clara Roquet
5 JAN 21h45
de João Pedro Rodrigues
12 JAN 21h45
de David Cronenberg
19 JAN 21h45
de Rainer Werner Fassbinder
26 JAN 21h45

As sessões realizam-se no Pequeno auditório da Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão. Os bilhetes são disponibilizados no próprio dia, 30 minutos antes do início das mesmas.

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26 21h45

O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES Rainer Werner Fassbinder

Um homem regressa a casa e tenta reconstruir a sua vida laboral e conjugal, tornando-se num mercador de fruta, ajudado pela sua mulher e outro homem, poucos anos depois do final da guerra. Num dos melhores filmes de toda a obra de Fassbinder, inspirado na vida de um tio seu, este pequeno conjunto de personagens irá oferecer um olhar humano e fulminante sobre os fantasmas, as divisões, a violência e a autodestruição de uma sociedade, e dos seus cidadãos, que tenta conviver com um passado irreconciliável com a própria vida. Uma obra determinante do cinema europeu do pós-guerra e da carreira de Fassbinder.

Titulo Original: Händler der vier Jahreszeiten (Alemanha, 1971, 90 min)
Realização, Produção e Argumento: Rainer Werner Fassbinder
Interpretação: Hans Hirschmüller, Irm Hermann, Hanna Schygulla, Klaus Löwitsch
Fotografia: Dietrich Lohmann
Montagem: Thea Eymèsz
Distribuição: Leopardo Filmes
Classificação: M/16
O que se passou entre eles é uma das histórias do Novo Cinema Alemão. Ela é Hanna Schygulla. Foi a sua star. Mas também uma participante renitente na lógica do colectivo que vivia em adoração ao mestre. Ela conta, aqui, o seu Fassbinder. Vasco Câmara, Publico de 7 de Outubro de 2022 Conheceram-se em 1966 numa escola de artes dramáticas, mas nem um nem outro, ela Hanna Schygulla, ele Rainer Werner Fassbinder, aqueceram os lugares. No caso de Hanna porque a rotina dos ensaios a ia convencendo que aquilo não era para ela; já Rainer não queria mesmo ser actor, queria ser cineasta.
Mas o encontro foi suficientemente marcante para ele não perder de vista um horizonte: quando fizesse filmes, ela ia ser a sua star. A deles foi uma das histórias do Novo Cinema Alemão. Separaram-se, nesse tempo da escola de actores, mas ele não se esqueceria dela e mais tarde chamá-la-ia para substituir uma actriz que se ferira na produção de Antígona, que o Action- Theater de Munique, uma das células que faziam guerrilha ao sistema teatral alemão com lições aprendidas com o Living Theater de Julian Beck, levava à cena num desactivado cinema da cidade. Hanna seria uma das três Antígonas da peça, Rainer chamara-a apenas dias antes da estreia. Ela tinha só de imitar o que as outras duas faziam.
E o resto é História: o frenesim de anos de subversão política e teatral, entre 1967 e 1976; formação de uma troupe de trabalho e de vida sentimental, volátil porque incapaz de não reproduzir os jogos de poder da sociedade “lá fora”, com actores e técnicos com quem Fassbinder começaria a experimentar o cinema; a passagem do Action-Theater a Anti-Theater, que coincidiu ainer no grupo — o “Marlon Brando de província” liderava uma facção que defendia que as decisões artísticas é que tinham de questionar as normas sociais e não as acções de rua, isto enquanto no público que assistia às representações se ouviam as vozes dos que integrariam a formação terrorista Baader-Meinhoff a gritar, naqueles anos em que a desilusão do pós-Maio de 68 ardia, que já chegava de teatro e que era preciso acção.
Esta que é uma das histórias do Novo Cinema Alemão conta-a o ciclo Fassbinder. Tem como extremos Cuidado com essa Puta Sagrada (1971) e O Casamento de Maria Braun (1979). Ou seja, vai de um filme-balanço, que encerrou uma fase de guerrilha ligada às experiências formais e de vida de uma troupe, a um filme que fantasia uma Hollywood na Alemanha, normalizando a narrativa, servindo-se de maiores orçamentos e do brilho de um star-system. No caso, de uma star: Hanna Schygulla.
Entre um e outro título (…) veremos O Mercador das Quatro Estações (1972), As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972), O Medo Come a Alma (1974), Effi Briest — Amor e Preconceito (1974), A Viagem ao Céu da Mãe Küster (1975) e Roleta Chinesa (1976): formulações depois do teatro experimental, a caminho do melodrama e da indústria e outras tantas manifestações do gesto artístico como política. Sobre a Alemanha e sobre os sentimentos. Dentro de um ensemble, de que ela nunca foi participante conivente — por isso sobreviveu para nos contar —, ou protagonista de alguns desses títulos, que são os melhores da sua carreira, eis Hanna Schygulla, 78 anos. E o seu Fassbinder.
Este ciclo sobre Rainer Werner Fassbinder acontece semanas antes da estreia de Peter von Kant, de François Ozon, versão masculina de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant. É actriz nos dois filmes, mas no de Ozon a sua presença é também a de testemunha de um tempo. E de uma personagem, o próprio Fassbinder. Que Dénis Menochet interpreta — o mesmo fato branco de Cuidado com Essa puta Sagrada. Fassbinder projectava publicamente uma sexualidade “macho”. Ménochet é muito inteligente a abrir para uma sensibilidade mais queer.
Havia de tudo. Fassbinder era um homem feito de muitas contradições. Como toda a gente, claro, mas no caso dele cada traço de carácter era puxado até ao extremo. Nunca escondeu a sua homossexualidade, nem na sua obra nem na sua vida. E desenvolveu mesmo um lado irónico sobre esse aspecto. Use as ferramentas de partilha que encontra na página de artigo. Por exemplo, para todos os seus colaboradores homens tinha um segundo nome feminino. Ele, por exemplo, chamava-se Bloody Mary. Ou seja, gozava um pouco com isso. Era também alguém que, tendo vivido numa época em que um certo modo de vida era ainda tabu, falava abertamente dele. Sem enveredar pelo “gay pride”. Que é uma reacção: as pessoas ficaram fartas de ser estigmatizadas e decidiram-se pelo orgulho. É um gesto reactivo, até pueril. Mas Fassbinder, quando fez filmes que se passavam em meios homossexuais, demonstrou que mesmo aí, em meios marginais, toda a categoria de valores de uma sociedade está representada e manifesta-se. Por exemplo, tudo o que tem a ver com o dinheiro. A sociedade controla todos, gays ou não gays. É por isso que às vezes os filmes dele não eram bem acolhidos nos meios homossexuais. Porque de forma geral os gays são representados como “aves do paraíso”. Para ele, não era assim. As Lágrimas Amargas de Petra von Kant é a prova disso. Há uma estilista que descobre que prefere as mulheres [Margit Carstensen], apaixona-se pela minha personagem [Karim] que consente porque quer subir a escada social. Ou mesmo salvar a sua existência. Havia sempre um olhar lúcido em Fassbinder.
Tenho a sensação — não é algo aleatório, apoia-se em declarações suas, na história do bando teatral que rodeou Fassbinder, em testemunhos de colegas seus — que foi sempre uma presença mais individualista do que membro de uma troupe.
Mais: penso que foi por isso que, tendo vivido o clã Fassbinder, escapou ao clã Fassbinder. O que não aconteceu com outros.
Não me presto nada a ser groupie. É contra a minha natureza. Não quer dizer que não me sinta bem em grupo, mas não gosto nem da adoração cega nem da obediência só porque sim. Sempre tive uma certa orientação em direcção à liberdade.
Mas naqueles tempos, do Antiteater de Munique, final dos anos 60, isso não devia ser fácil. Evidentemente que eu não era excessivamente amada pelos outros [risos]. Comentavam: “Porque é que foi ela que teve sempre os melhores papéis quando não quer aderir ao clã?”. Mas não podiam fazer nada contra isso. E eu também não. Foi simplesmente assim. Fassbinder não tratava as pessoas da mesma maneira. Tratava as pessoas de acordo com o eco que escutava nelas. Por exemplo, se se cruzava com pessoas de tendências sado-masoquistas, ele próprio fazia esse jogo. Se se tratava de pessoas livres, como eu, ou que não queriam ser metidas em gaiolas, não tentava formatá-las. A não ser nos papéis. Aí ele era o mestre, era preciso fazer como ele queria. Mas sabia que se eu não quisesse, eu virava as costas.
Era uma forma de sobreviver? Porque desse grupo, em que se misturavam os jogos de poder na intimidade e o trabalho, houve gente que não resistiu. Teve consciência, no momento, do perigo do envolvimento?
Eu não queria entrar naquele modo de vida. Não quer dizer que não me ligava ao grupo. Mas fazia-o de outra maneira. Não falávamos muito entre nós, Fassbinder e eu. Provavelmente porque sentíamos que uma troca exagerada era um risco para a nossa relação. Mas eu não recuava em certas situações. Por exemplo, no fim da rodagem de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant disse-lhe: “Rainer, a partir de agora deixa-me de fora deste tipo de papéis”. Ele sentiu-se muito vexado.
Teve de facto os melhores papéis, o que devia criar ciúmes nos outros. Conheceram-se, Fassbinder e a Hanna, em 1966, quando estudavam na escola de actores e ele terá pensado logo nessa altura, embora não lho tivesse dito, que ia ser a estrela dele.
Sim, sim, nos primeiros encontros na escola de arte dramática. Estávamos na mesma turma. Eu abandonei a escola porque sentia que me tornava cada vez pior à medida que ensaiávamos. Achei que não era feita para aquilo. Mas ele depois procurou-me e encontrou-me. Ele próprio depois abandonou a escola, depois de mim, e quando estava com o seu Antiteater procurou-me. Para substituir alguém que tinha tido um acidente. Mas já nessa altura tinha escrito que desde que me vira pela primeira vez, tivera um “flash”, como se dizia na época, um clarão. “Ela vai ser a star dos meus filmes”. Ele sabia já que queria realizar filmes em vez de ser actor. Escreveu que eu ia ser a sua “trave mestra”. Se ele não tivesse andado à minha procura — eu tinha regressado aos meus estudos na universidade — eu não seria actriz. Encontrou-me, deixou-me uma mensagem na caixa do correio: “Queres interpretar Antígona? Estreia daqui a dois dias”. Fiquei muito curiosa. Peguei na bicicleta e fui ao local marcado, um antigo cinema que já não funcionava, com um pequeno bar.
Em Munique…
Sim, em Munique. Eu não gostava de ensaios, ensaios, ensaios, e o que me pediam para fazer ia bem comigo. Parecia que o destino ia atrás de mim. Na altura a mise-en-scène ainda não era de Fassbinder, ele era apenas actor, era de Peer Raben, que se tornaria depois o compositor dos seus filmes. À maneira do Living Theater, na época, não se faziam grandes ensaios e toda a gente fazia todos os papéis. No caso da peça, havia três Antígonas e disseram-me que eu tinha de fazer o que faziam as outras. E que devia aproveitar: quando a luz incidisse sobre mim, devia fazer o que quisesse. “Se não fizeres nada, isso será sempre forte. Se fizeres algo, então exagera” [risos].
Há um primeiro período do seu trabalho com Fassbinder, que vai até Effi Briest. Há um hiato de cinco anos…
… sim, porque durante a rodagem de Effi Briest houve um momento em que ele pousou o braço nos meus ombros, o que fazia sempre para dizer as coisas mais íntimas e agradáveis: “Sabes, depois de Effi Briest vamos fazer isto e aquilo e aqueloutro”. E eu deixei escapar da minha boca palavras sem sequer pensar nelas. Tinha vontade de fazer uma pausa na minha carreira, estava a ir de um filme a outro e tinha perdido um pouco o gosto. “Rainer, tenho necessidade de fazer uma paragem”. Senti o braço dele a escorregar, imediatamente, como um amante que se sentiu ferido…
… traído.
Traído. E depois disso todo o filme passou a ser feito com uma certa distância. É um flme muito interessante, e formalmente perfeito mas, para mim, foi um choque quando o vi. Tinha sido uma espécie de prenda dele para mim, Effi Briest, um romance [de Theodor Fontane, 1819-1898] que eu lera na escola. Mas depois ele fez outra coisa. A heroína, a sua vivacidade, liberdade de espírito, ele transformou-a numa prisioneira de um sistema de ascensão social, um pouco vítima de uma mãe fria e que projectou o seu desejo sobre a filha — porque Effi Briest casa-se com o homem que a mãe tinha querido como esposo. Rainer fez uma mise-en-scène em que a superfície é perfeita mas em que o interior está todo podre, tudo é dor. Sufoca-se. Encontraram-se cinco anos depois, para um filme que seria fundamental para si, e para ele e para o seu desejo de uma “Hollywood na Alemanha” e em última instância para o cinema alemão: O Casamento de Maria Braun. Era o mesmo Fassbinder?
Não era. Lembro-me que quando era jovem, ele ficava feliz, no final de uma take, como uma criança contente. “Está feita, está feita”, gritava. Quando me reencontrei com ele para O Casamento de Maria Braun já não havia nada disso. Dizia “Obrigado!” e era tudo. Não mostrava emoção. Penso que se cansou. Fazer um filme a seguir a outro a seguir a outro era a sua forma de poder viver, mas ao mesmo tempo penso que se fatigou disso tudo. Tenho a imagem de um imperador romano com todo o seu império atrás de si que ele contempla com uma certa nonchalance e ao mesmo tempo com uma certa distância.
Mas foi um filme importante para os dois.
Sim, abriu todas as portas possíveis. Foi acolhido favoravelmente em todo o lado. Sabe, eu não estava próxima do Fassbinder dos últimos anos. Tivemos um afastamento e uma disputa nunca resolvida, durante Lili Marlene (1981), e ele remeteu-se ao silêncio. Até que recebi, estava no México a rodar Antonieta (1982) de Carlos Saura, uma mensagem no hotel, em que ele me dizia: “Telefona-me”. Não sei ainda hoje como ele conseguiu saber onde eu estava, imagino que terá sido através da minha mãe. Não quis telefonar-lhe, não sei, achei que não era urgente. E não telefonei. Estávamos já na segunda fase da rodagem do filme de Saura, numa das últimas cenas, quando Jean-Claude Carrière [argumentista] me diz: “Olha, Fassbinder morreu. Ouvi na rádio”. Foi um enorme choque. Fiquei dobrada em dois durante cinco minutos, silêncio, e a seguir continuei o trabalho.
Em Effi Briest, a sua mãe é interpretada pela mãe de Fassbinder [Liselotte Eder de seu verdadeiro nome, aparece creditada nos genéricos como Lilo Pempeit]. Diz-se que todas as mulheres do seu cinema são variações a partir de características, de que ele gostava ou odiava, da mãe. Com quem tinha uma relação no mínimo singular.
Não vejo assim. A mãe de Fassbinder esteve ausente da infância do filho porque ficou doente, com tuberculose. Andou sempre em hospitais e sanatórios em estadias muito longas. A sua presença fazia-se com a ausência, uma carta de tempos a tempos. Não foi culpa dela. Depois, aproximaram-se mas ele tratou-a mais como companheira de trabalho. Era ela que fazia as contas das produções, na sua empresa Tango Film. Não era uma relação marcada pela emoção.
Eu diria que as principais personagens femininas de Fassbinder tinham coisas de Fassbinder. Maria Braun tinha mas dele do que de mim. Por exemplo, o seu absolutismo. No início da rodagem perguntei-lhe: “Porque é que a personagem tem de morrer?”. Porque na versão inicial ela ia de automóvel de encontro a uma árvore. “Rainer, deixa-a viver. Porque queres que ela morra?”. Ele respondeu: “Porque quando se vai longe demais não se pode voltar atrás”.
Julianne Lorenz, montadora dos filmes de Fassbinder e sua companheira nos anos finais, fala de alguém que tinha ganho um desejo de paz “burguesa”. Qual é o seu Fassbinder?
O meu Fassbinder… é um menino com falta da primeira onda de calor humano que todo o ser humano precisa. Porque tendo perdido a mãe, perdeu também o pai, que abandonou a família quando ele tinha 5 anos. Ele não viveu uma infância. Ele próprio o disse: “Quando me perguntam se tive uma infância feliz, eu respondo que não tive infância”. Há algo de eterna criança nele. Porque quando não se vive algo inteiramente, passa-se a vida a tentar reviver isso. Ele viveu sempre em perda em relação àquele primeiro momento em que os pais dão confiança aos filhos. Por isso não tinha confiança no amor. Foi esse o seu tema. Ele próprio disse que um cineasta passa a vida a trabalhar o mesmo tema e que o dele era a manipulação dos sentimentos. Como ousar amar quando tudo é um jogo de poder e de manipulação? As Lágrimas Amargas de Petra von Kant é sobre isso. Um rapazinho cheio de exuberância de vida que não teve sorte na primeira fase da sua existência e que por isso estourou de forma desmesurada.