CINECLUBE DE JOANE

Janeiro 2023
Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão

Programa mensal

de Clara Roquet
5 JAN 21h45
de João Pedro Rodrigues
12 JAN 21h45
de David Cronenberg
19 JAN 21h45
de Rainer Werner Fassbinder
26 JAN 21h45

As sessões realizam-se no Pequeno auditório da Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão. Os bilhetes são disponibilizados no próprio dia, 30 minutos antes do início das mesmas.

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19 21h45

CRIMES DO FUTURO David Cronenberg Traz Outro Amigo Também

"Crimes of the Future" mergulha num futuro não tão distante onde a humanidade aprende a adaptar-se a ambientes sintéticos. Esta evolução leva o ser humano para lá do seu estado natural, para uma metamorfose, alterando a sua composição biológica. Enquanto alguns abraçam o potencial ilimitado deste transhumanismo, outros tentam policiar o mesmo. Saul Tenser, é um apreciado artista que abraçou esta Síndrome de Evolução Acelerada, germinando órgãos novos e inesperados no seu corpo. Com o seu parceiro Caprice, transforma a remoção destes órgãos num espectáculo para os leais seguidores se maravilharem em tempo real. Mas o governo e uma estranha subcultura estão atentos.

Titulo Original: Crimes of the Future (Grã-Bretanha/Canadá, 2022, 105 min)
Realização e Argumento: David Cronenberg
Produção: Robert Lantos
Interpretação: Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart
Fotografia: Douglas Koch
Montagem: Christopher Donaldson
Música: Howard Shore
Estreia: 24 de Novembro de 2022
Distribuição: Pris audiovisuais
"A pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema" _ Entrevista Através de Crimes do Futuro, reencontramos o fascínio e a inquietação do cinema de David Cronenberg. O cineasta canadiano sublinha o facto de a tecnologia ter transfigurado todos os elementos da nossa vida, incluindo os modos de ver cinema. João Lopes, DN de 21 de Novembro de 2022 Revelado no passado mês de maio, no Festival de Cannes, Crimes do Futuro trata-se de um acontecimento tanto mais empolgante quanto o cineasta canadiano reconhece que, depois de Mapas para as Estrelas (2014), encarou seriamente a hipótese de não voltar a filmar. Na raiz do projeto está a ideia "futurista" segundo a qual os corpos podem começar a gerar órgãos "selvagens", sem função aparente na dinâmica da própria existência humana. De tal modo que as performances do artista interpretado por Viggo Mortensen têm como matéria principal a contemplação desses órgãos. Ou como diz a personagem de Kristen Stewart: "A cirurgia é o novo sexo". Para o cineasta que encenou muitas e surpreendentes transformações da figura humana - de A Mosca (1986) a eXistenZ (1999), passando por Irmãos Inseparáveis (1988) ou O Festim Nu (1991), este inspirado em William S. Burroughs -, as histórias do presente, tanto quanto as fábulas do futuro, envolvem sempre as relações entre corpos e tecnologia.
No dossier de imprensa de Crimes do Futuro encontramos uma curiosa afirmação de Viggo Mortensen. Diz ele que o filme "poderá ser a história mais autobiográfica de Cronenberg" - como encara esta afirmação?
Creio que ele não está a dizer que o filme seja "autobiográfico" no sentido de estar a contar histórias da minha vida, a minha infância ou o meu dia a dia em Toronto. Obviamente, não é isso. Mas o facto de ele próprio interpretar a personagem de um artista que, literalmente, oferece ao espetador as suas entranhas leva-me a supor que me encara como um artista que dá sempre udo, sem censura, sem se preocupar com qualquer tipo de política, seja política de género ou política social.
Sente-se assim? Como alguém que dá tudo dessa maneira?
Não exatamente, parece-me que ele estava a tentar ser provocador.
Porque decidiu repetir o título de um filme que tinha realizado em 1970?
Na verdade, foi algo de muito simples. O título original era Painkillers [Analgésicos], escrevi-o em 1998. O certo é que, depois disso, houve pelo menos uns quatro filmes Painkillers e mais três séries de televisão com o mesmo título... Robert Lantos, o meu produtor, chamou-me a atenção para tal vulgarização, dizendo-me que iríamos precisar de outro título. Ele próprio sugeriu que "roubássemos" o título ao meu velho filme. Fazia sentido. Esse filme era, realmente, sobre "crimes do futuro", mas as coincidências ficam por aí: o novo filme não é um "remake" nem uma adaptação.
Ainda assim, talvez possamos fazer um contraponto, dizendo que o primeiro Crimes do Futuro tinha a ver com dermatologia e cosmética, o exterior do corpo, a pele, enquanto agora se trata de ir mesmo ao interior do corpo.
Há alguma verdade nisso, mas alguém me recordou algo que tinha mais ou menos esquecido. De facto, no primeiro filme há uma cena num laboratório em que um homem está a apresentar órgãos do corpo humano que foram criados sem qualquer função específica...
Será que estamos a perder o conhecimento do nosso corpo? Ou aquilo que está em jogo é algum tipo de libertação do próprio corpo?
Não, não creio que alguma vez possamos libertar-nos do nosso corpo. Nem sequer penso que isso pudesse ser uma coisa boa. Provavelmente, já toda a gente me ouviu dizer isto em algum contexto, mas como um existencialista, ou alguém que por vezes se vê como um existencialista, acredito que o corpo é aquilo que somos: é uma coisa fantástica, mas é também a única coisa. Ou seja: não há vida depois da morte, não há vida antes da morte - é algo difícil de aceitar, mas é essa a realidade, a realidade existencial. Ou ainda: não há maneira de escapar ao corpo. Podemos, então, perguntar: que corpo?
Podemos, de facto, discutir como é que estamos a transformar o corpo. Um animal, na floresta, não controla a sua evolução, mas nós assumimos o controle da nossa própria evolução, talvez sem estarmos muito conscientes do que estávamos a fazer. A começar pelo facto de não aceitarmos que, quando o sol se põe, tenhamos escuridão: temos luzes, temos calor... E estamos a pôr muitos químicos no interior dos nossos corpos, seja porque os recebemos da atmosfera, seja de forma deliberada, como medicina - incluindo nas crianças. Daí as respostas evolutivas por parte do corpo, tentando acomodar tudo isso. Julgo que esse é, de certo modo, o tema de Crimes do Futuro. Seja como for, sem querer ser tão extremado como aquilo que o filme conta, creio que os nossos corpos, os seus órgãos, neurónios, etc., não são nem de longe nem de perto como os corpos gregos, há 3000 anos. Nem sequer como há 200 anos, desde a Revolução Industrial: os nossos corpos mudaram em resposta ao que fizemos ao ambiente, primeiro com as cidades, depois no próprio planeta. Seria interessante que pudéssemos dizer que estamos, agora, conscientes do facto de sermos responsáveis pela nossa própria evolução. E perguntássemos: o que queremos que, realmente, nos aconteça? Será que isso pode acontecer sem ser demasiado perigoso ou catastrófico?
Poderá ser um jogo de palavras, mas será que, por vezes, a tecnologia é responsável pelos crimes do presente?
Creio que não é boa ideia cair em generalizações. Seria hipócrita dizê-lo porque há tanta tecnologia que me dá prazer. Hoje em dia, há inúmeras pessoas que têm a sua vida no telemóvel: quando perdemos o telemóvel, sobretudo à medida que vamos envelhecendo, é como se perdêssemos o nosso passado - o meu telemóvel passou a ser uma parte importante da minha memória e, nesse sentido, do meu cérebro. Quantas vezes não nos aconteceu não nos lembrarmos do nome de um ator, mas apenas do título do filme em que o vimos... Que fazemos? Pegamos no telemóvel! Ora, não me parece que queiramos desistir disso. A tecnologia alargou a nossa vida, a nossa condição de seres humanos, inclusive na forma como lidamos com as inevitáveis crises de saúde. Eu tenho 79 anos, quase 80, e não sinto a minha idade [riso]! Por isso, não me parece possível considerar que toda a tecnologia seja criminosa... Mas gosto da ideia [riso]!
Recentemente, Matthew Ball publicou um livro intitulado O Metaverso que, com grande otimismo, anuncia uma nova era para a humanidade, considerando que, nomeadamente através de uma complexa evolução do 3D, se irá superar a Internet tal como a conhecemos - quando desenvolve as suas histórias sobre a tecnologia, pensa também nessas questões?
Sim e não. De momento, o Metaverso, tal como nos chega enquanto projeto do Facebook, não me impressiona especialmente, o que não quer dizer que não possa haver uma versão do Metaverso que possa ser útil. Confesso que não penso muito nisso. Durante a pandemia, por exemplo, muitas pessoas descobriram o Zoom e as reuniões com verdadeiros seres humanos foram substituídas por conferências através do Zoom... Claro que sei disso e, em boa verdade, também tirei partido disso, mas não será propriamente a mesma coisa que os dirigentes do Facebook estão a tentar promover como uma filosofia que vai abalar tudo e todos. Para mim, não vai acontecer.
Como realizador, como encara o facto de haver espetadores que vão ver o seu novo filme numa sala escura, outros num ecrã caseiro?
Eis um exemplo: brevemente, vai ser lançada uma nova cópia do meu filme Naked Lunch/O Festim Nu (1991). Para verificar as cores e a qualidade da transcrição para 4K, vi o filme no meu iPad, não precisei de ir a uma sala. Isto porque a qualidade passou a ser magnífica e controlável. Não sinto a falta do cinema e, honestamente, não vou ao cinema: somos obrigados a ver anúncios, depois há pessoas ao telemóvel, enfim, a maior parte das vezes não é uma experiência agradável. Penso que a pandemia e a Netflix modificaram a paisagem do cinema. E penso também que vai haver cada vez menos grandes ecrãs e grandes salas de cinema. Creio que quem veja Crimes do Futuro no seu iPad terá uma experiência genuinamente cinematográfica. Cerca de oito anos antes de Crimes do Futuro, publicou Consumed, o seu primeiro romance em que corpo e Internet são questões centrais. Terá sido também um passo intermédio para chegar a este novo filme?
Sim, creio que sim. Na verdade, pensei que poderia não voltar a fazer filmes.
Podemos saber porquê?
Escrever um romance é uma experiência muito solitária, o que nem sempre é uma coisa boa, mas é muito menos "Sturm und Drang", se assim me posso exprimir... Isto porque um filme envolve centenas de pessoas e não tinha a certeza se queria voltar a isso. Fazer o filme continuava a ser agradável, mas montar o projeto, obter financiamento, discutir o argumento, escolher os atores... comecei a pensar que eram coisas que não queria voltar a fazer. Não que eu considerasse que a minha vida criativa tinha chegado ao fim, mas talvez preferisse escrever outro romance. Até que o Robert Lantos me sugeriu que voltasse a ler o argumento de Painkillers. Não sei explicar de outra maneira. Primeiro, não foi nenhuma postura filosófica, apenas a sensação de que talvez não precisasse de fazer mais filmes... Depois, enfim, deu-me prazer, foi divertido e agora quero fazer mais.
E como foi dirigir Viggo Mortensen, Léa Seydoux ou Kristen Stewart? Escusado será dizer que não seria possível pedir-lhes que interpretassem Crimes do Futuro como se fosse a sua vida de todos os dias...
Não lhes disse isso [riso]! Gostaram do argumento, mas para um ator não é necessariamente todo o argumento que os mobiliza, mas a personagem que vão representar, qualquer coisa de excitante e revelador que a personagem lhes traz. Por isso, não precisámos de ter uma conversa de duas horas em que eu lhes explicasse a filosofia por trás do filme - não funciona assim. A sua anterior longa-metragem, Mapas para as Estrelas, surgiu em 2014, mas pelo meio há curta que se chama A Morte de David Cronenberg. Nela podemos vê-lo prostrado junto a uma cama onde está o seu próprio cadáver. Apesar disso, e também apesar do título, talvez se possa dizer que é quase uma pequena comédia...
Será uma comédia ou uma tragédia, não tenho a certeza [riso]! Quem tiver uma visão mais pesada do assunto, dirá que se trata de Cronenberg a confrontar-se com a realidade da sua própria morte, o que até pode fazer sentido. A verdade é que nasceu do facto de eu ter participado como ator numa série sobre "serial killers", intitulada Slasher. A minha personagem morre e, por isso, construíram aquele cadáver, modelado a partir do meu corpo, que acaba numa câmara frigorífica. Como é óbvio, eu não necessitaria de estar na rodagem daquela cena, já que o meu cadáver estava a representar a minha personagem... Mas quando mo mostraram, tive uma reação muito intensa, senti uma estranha afinidade, afeição e ternura - daí a ideia de me filmar com o meu cadáver. Reconheço esse fator cómico, mas também é verdade que há pessoas que ficam muito perturbadas.